Por que escrevo? ou Sobre recomeçar

Thaís Costa
Maio/2017


Ferreira Gullar disse um dia numa entrevista que “a arte existe porque a vida não basta”. Antes de Gullar, porém, Fernando Pessoa já havia afirmado o mesmo. Saramago, também numa entrevista, ao ser indagado sobre o motivo pelo qual escrevia respondeu: “Eu vivo desassossegado, escrevo para desassossegar. Não desejo abandonar-me a comodidade existencial. Mas o que procuro saber com a minha escrita, no fundo, é essa coisa tão simples e que não tem resposta: quem somos? Porém, quando esgotar o que tenho que dizer, terei a sensatez de não escrever mais”. Acho que Saramago morreu antes disso, digo, antes de que se esgotasse o que tinha a dizer. Morreu dizendo. E muito ainda deixou de dizer. Tendo a crer que essa necessidade passe por aí: há pessoas que têm muito o que dizer, ou melhor, que têm consciência, ainda que inconscientemente, disso e sabem, ainda que não saibam, como fazê-lo.  

Digo necessidade, assim como temos necessidade de respirar, comer, beber, ir ao banheiro... Há pessoas que, se não escrevem, afogam-se na sua própria angústia, no seu desassossego, ainda que esse afogar-se lhes passe despercebido, dando-lhes a impressão do que Saramago chamou de “comodidade existencial”. A ignorância, no sentido literal do termo, é uma dádiva divina (sem temer aqui a redundância). Se eu não sei quem sou ou quem posso ser, aquilo que me desassossega simplesmente não existe. O que me leva a concluir, haja vista os inúmeros escritores que se permitiram desassossegar, que essa tal comodidade não seja um privilégio de todos.

Isso me faz lembrar que Livro do Desassossego é também o título de uma das composições mais desconcertantes de Fernando Pessoa/ Bernardo Soares. Não que toda a sua obra não o seja, mas esse livro traz um desconcerto diferente. Profundo. Foi ele por muito tempo o meu livro de cabeceira, o lia, à noite, como se fosse um exemplar daquele “Minutos de sabedoria” – às avessas, é claro, visto que, em vez de me trazer o conhecimento, por meio da identificação, me levava justamente ao questionamento, à dúvida, à paralisante e, ao mesmo tempo, instigante angústia de saber que não sabia e que talvez nunca iria saber o motivo desse vazio, dessa ausência, que me habita e que me transborda.   

É paralisante porque me faz perceber a real dimensão das coisas do mundo e o quão nós somos insignificantes diante da sua amplitude e imensidão. Inúmeras possibilidades de ser e de não ser. Cruzamentos. Caminhos. Direita ou esquerda? Avante ou à ré? Escolhas. O que teria acontecido se eu tivesse feito isso e não aquilo? Onde eu estaria agora? Quem eu seria? E isso tudo – todas essas (im)possibilidades – me dá medo, um medo que, por vezes, me acovarda e que me faz parar. Mas é também instigante e me faz seguir em frente, pois, como o afogado que instintivamente luta para não sucumbir, faz com que eu lute para que esse vazio, ao transbordar, não me afogue. A vida não basta, disseram Pessoa e Gullar. Não sei se o que escrevo pode ser considerado arte, mas sei que escrevo e escrevo porque há muita vida e muitas vidas dentro de mim. Foi com Drummond que compreendi isso: o meu vazio, essa minha ausência companheira de todos os dias, não é uma falta, mas um “estar em mim”. Eu posso senti-lo, eu posso vê-lo e até tocá-lo. Compreendendo-o, desisti de entendê-lo e passei a dançar com ele, a ver nele a extensão de mim mesma, tudo aquilo que fui e deixei de ser ou que não fui e poderia ter sido.

Comecei a escrever ainda criança, como quem respira. Na época, fazia diários. Vários. Na adolescência e nos primeiros anos da juventude continuei. Tive um blog em que publicava fragmentos de mim anonimamente. Um dia comecei a achar tudo muito ruim e parei. Joguei boa parte do que escrevi fora. A leitura, o estudo, o trabalho, a rotina, a vida – tudo isso me atropelara, me engessando e me paralisando. Vivi anos sem compreender. Como uma máquina. “A vida apenas, sem mistificação”, diria Drummond. O meu vazio silenciado, enterrado dentro de mim, produzia os seus efeitos, os seus sintomas. Desassossegando-me, dava pequenos sinais de que ainda estava ali, de que existia, mas eu não o compreendia. Não percebia nem mesmo que o havia abafado e já não me lembraria dele se não fossem alguns alunos me perguntarem: mas, professora, por que você não escreve? A vida é assim: às vezes abafamos tanto certas coisas que, por mais que ainda nos incomodem, não nos conseguimos lembrar delas, pelo menos não da forma como se afiguravam antes. Provavelmente porque, depois de tanto tempo, já não tenham a mesma feição, já não sejam a mesma coisa, mas uma coisa outra: inexplicável. Esses alunos, porém, enxergaram em mim aquilo que eu já não mais enxergava: o meu vazio silenciado, a minha angústia, o meu desassossego. Talvez porque acreditassem que eu tenha algo a dizer e que, mais do que isso, saiba como fazê-lo. Eu não sei. Porém, não fugirei mais dele. Eu o aceito, não como uma punição, mas como uma parte importante de mim que precisa transbordar. E hoje, depois de muito relutar, recomeço. Volto a ouvir os primeiros acordes da música que ditará o ritmo da nossa dança. Danço. Respiro. Nado descansadamente nas águas turbulentas do meu vazio. Permito-me desassossegar-me. Desassossego-me. Escrevo.

Um comentário:

  1. Que possamos desasossegar nossos comodismo cotidianos que nos amarram e nos impedem de seguir! Belo texto!

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