sexta-feira, 17 de abril de 2020

Em tempos de pandemia, miniconto da solidão ou a luta diária para não surtar (abr/2020)

Meu pai tem 84 anos e é alcoólatra. Desde criança lido com isso e, depois de adulta, já o levei a diversos médicos para tentar combater essa doença, mas não houve resultado. Já saí do trabalho algumas vezes para socorrê-lo e levá-lo às pressas para o hospital por causa do alcoolismo. Ele já caiu bêbado na rua e em casa algumas vezes e já quebrou alguns ossos: ombro, cotovelo, dedo das mãos, costela... Já briguei, gritei, chorei, implorei, conversei... nada deu certo. Por isso, hoje fazemos acordos. Ele bebe um pouco todos os dias, mas precisa se alimentar, precisa me ajudar cuidando de si mesmo para que eu possa estudar, trabalhar e cuidar dele também.
A única distração que ele tem é ir ao bar, ver os amigos... vai e volta várias vezes ao dia... nos intervalos, dorme e vê TV. As idas ao bar se tornaram pequenos momentos de felicidade na sua rotina. Como quase não paro em casa, não me sinto no direito nem com forças para tirar isso dele, por isso acabei cedendo, desistindo de lutar contra e optando por fazer acordos, embora nem sempre ele os cumpra.
Bem.. desde que começou o distanciamento social obrigatório, eu o proibi de sair e tenho comprado a bebida dele para conseguir controlá-lo, já que quando não bebe ele fica muito nervoso. Ontem eu comprei duas garrafas de rum. De ontem para hoje ele praticamente acabou com uma garrafa, então eu fui conversar com ele, pedir para pegar mais leve. Ele abaixou a cabeça triste e disse: Eu tô nervoso, Thaís. Não aguento mais ficar preso dentro de casa... nesse quarto.
Eu fiquei sem palavras. Depois disso, o que eu poderia dizer para ele? Eu também estou nervosa e triste com toda essa situação a que estamos submetidos. Fiquei pensando na atenção que estou dispensando a ele... no tempo que lhe estou dedicando nos intervalos entre gravar aula, fazer faxina, fazer comida, ficar desesperada com as notícias e tentar não surtar. Realmente ele tem passado muito tempo sozinho. Mas o que eu posso fazer? E que forças eu tenho para fazer algo agora?
Me lembrei da fala do novo ministro da saúde sobre o gasto de dinheiro público com idosos (Para bom entendedor... Para que tentar salvar idosos?). Me lembrei também da minha tia evangélica dizendo que eu estou matando meu pai aos poucos com álcool. Meus olhos se encheram de lágrimas, então olhei pra ele, que ainda se encontrava de cabeça baixa, e disse: Tá bem, pai. Vou colocar uma cerveja na geladeira para a gente tomar no jantar.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Dia dos professores 15/10/2017

Eu tentei. Eu juro que tentei resistir ao desejo de escrever algo sobre o dia de hoje. Mas acabou sendo mais forte do que eu. Então, vamos lá.
Em primeiro lugar, eu gostaria de dizer que não escolhi ser professora, pelo menos não conscientemente. Eu fui escolhida. Na minha adolescência, pensei em administração, direito, jornalismo... mas o magistério nunca foi algo dito por mim. Porém, estudando em colégio público e sem grana para pagar um cursinho, tive de fazer um cálculo quase matemático. Eu gostava de estudar, sempre acreditei que eu era capaz de fazer tudo o que quisesse, só precisava de oportunidade, e a oportunidade - eu também sabia - só viria por meio da educação.
Ser uma das melhores alunas do meu colégio, ter as melhores notas, gostar de estudar todas as matérias e de ensiná-las (!!!) aos meus colegas não me garantiu, na corrida injusta do vestibular, nota para o curso de Comunicação Social. O cálculo, então, foi o que me levou a escolher o curso de Letras, ainda sem pensar no magistério. Afinal, qual era a matéria em que eu tinha maior facilidade? Qual o curso que seria mais próximo da Comunicação social? Além do mais, eu havia descoberto, ainda que tardiamente, o prazer pela leitura, então não tinha o que perder em tentar.
Escolhi o curso de Letras e na primeira semana estava apaixonada, mas ainda não pensava em ser professora. Na verdade, houve um tempo em que eu até tive pânico de sala de aula. A solicitação  de transferência  de  curso, porém, nunca foi feita. Com o passar dos anos, veio a descoberta de uma vocação que eu não havia imaginado, embora parecesse óbvia para alguns. Minha mãe recentemente me disse (me lembrou?) que, desde pequena, eu queria ser professora: - Você dava aula para tudo - ela disse -, para bonecas, para as crianças do prédio e até para as paredes.
De fato, lembro que ganhei quando criança  uma lousa de presente do meu pai por causa disso. Bem, mas, se essa vocação se colocou desde tão cedo, por que eu nunca pensara nela como uma possibilidade? Talvez porque já naquela época ser professor não estava associado a ser bem-sucedido, talvez porque eu acreditava que o céu era o limite e o magistério me prenderia ao chão.
Esse, contudo, não é o relato de uma pessoa frustrada, que se tornou professora por falta de opção. Esse é o relato de alguém que, como eu disse, foi escolhido para seguir essa carreira. Todos no mundo têm uma missão e eu estou convencida de que essa é a minha. Visão utópica? Romântica? Eu sei - e como sei - que a rotina é árdua, cansativa, que exige dedicação e abdicação. Muitas vezes a desmotivação e o desânimo, devido à falta de valorização e reconhecimento por parte do governo, das escolas, dos alunos e dos pais, leva muitos a desistir, alguns antes mesmo de começar. Eu sinto e passo por tudo isso todos os dias. Tudo isso me abala e muito. Há, no entanto, algo que me faz continuar e acreditar: alguns alunos. É, não são todos, infelizmente. Mas não dá para mudar o mundo todo de uma vez ou sozinha.
Como professora, mais do que transmitir conteúdos e vender modelos, eu busco plantar sementes. Sementes que eu espero que um dia germinem, cresçam e plantem outras sementes. São esses alunos que me ajudam a manter a chama acesa. É por eles que sigo em frente tentando fazer o meu melhor, tentando ser uma pessoa melhor, a melhor pessoa que posso ser. O dia de hoje, então, sem esses alunos, não faria sentido. Sem eles, eu não seria professora (existem professores sem alunos?). A eles dedico esta crônica e agradeço por tudo o que, mesmo sem saberem, me ensinaram.

Dia do professor 15/10/2016

O professor está sempre se atualizando, sempre aprendendo fora e dentro da sala de aula (sim, porque os alunos também nos ensinam muito), mas acima de tudo o professor precisa estar sempre lutando. Ele é um ser utópico por natureza, um sonhador, um idealista que acredita que a educação é o caminho para a transformação, para a mudança da sociedade de modo que esta se torne mais igualitária e mais justa (se você é professor e não acredita nisso, é bem provável que esteja na profissão errada). Por isso, todo professor tem (ou pelo menos deveria ter) a síndrome do beija-flor. Ele acredita piamente que fazendo a sua parte ajudará a formar cidadãos críticos e, portanto, cônscios de seus direitos e deveres e que, com isso, ajudará também a construir um mundo melhor para todos. O que eu estou dizendo aqui é que ser professor vai muito além de transmitir conteúdos, ser professor é inspirar pelo exemplo, é tocar vidas e ser também por elas tocado. Ninguém se torna professor por dinheiro ou por status... todos o fazem por amor e por fé. É uma profissão bonita e de utilidade pública, sim, mas como qualquer outra precisa ser reconhecida e valorizada, porque, afinal de contas, sonhos, amor e fé não enchem a barriga de ninguém. Eis então os meus votos para esse dia dos mestres: que os alunos percebam as oportunidades que têm de aprender muito mais do que o conteúdo da disciplina com cada professor que entra na sua sala, que a sociedade e o Estado se deem conta da função social desses profissionais e que passem a valorizá-los como merecem e que os meus colegas de profissão nunca deixem de sonhar e de lutar! Façam a diferença! Sejam a diferença! E, apesar das dificuldades que esses dias sombrios nos apresentam, aguentem firmes!

#professorcomorgulho
#escolasemmordaça

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

ASSASSINO POR ACASO (JUL/2018)


          Não, não era um sonho. Pensou Edgard Wernicke quando acordou no dia seguinte enclausurado numa cela imunda e superlotada da penitenciária de Bonsucesso. Ele que fizera tanto sucesso repentinamente, após um longo período de invisibilidade, deveria estar agora se culpando por não ter ao menos terminado a graduação em jornalismo que começara na juventude. Se o tivesse feito, teria ao menos a garantia de uma cela especial em meio a toda aquela loucura que lhe havia acometido desde a noite anterior. Mas não, ele não era um cara de terminar as coisas, de começar sim, mas de terminar nunca. Em quantas profissões havia mesmo se lançado antes de decidir tornar-se escritor? Inúmeras. Tantas que já nem poderia mais se lembrar de todas. Mesmo a carreira de escritor havia deslanchado de forma meio que repentina. É certo que desde rapaz ele tentara escrever poemas, contos, crônicas, artigos... mas, além da pouca qualidade dos manuscritos, faltava-lhe sobretudo fôlego para o grand finale.

            Depois das quase sete horas de depoimento na Delegacia de Homicídios, no centro da cidade, ele foi levado para a penitenciária onde aguardaria o desenrolar das investigações e, desde que fora jogado naquela cela onde se encontrava, havia dormido menos que duas horas. Estava exausto, atordoado e ainda não conseguia entender bem o que acontecera. Também durante o interrogatório ele não parecia estar ali. O delegado inclusive lhe perguntara mais de uma vez se ele havia feito uso de algum tipo de entorpecente. O senhor quer dizer droga? Acha que eu sou um drogado? É isso? É por isso que estou aqui? Drogado, eu? Onde já se viu? 

O barulho de passos era o aviso de que alguém se aproximava. Um por um os corpos amontoados nas celas foram-se levantando. Ele ouvia sons esquisitos, meio animalescos, mas não os identificava como palavras, até que um prisioneiro da sua cela, iluminou-lhe a situação: É o café. Um carrinho vinha lentamente sendo empurrado pelo corredor, parando a cada cela para alimentar os homens famintos. Agora ele conseguia entender uma ou duas palavras: xingamentos, reclamações... nada que lhe interessasse. Quando o carrinho chegou à sua cela, a última do corredor, já estava quase vazio. Percebeu que o que ali havia evidentemente não seria o suficiente para todos. Os presos avançaram em direção às grades e, debatendo-se, tentavam pegar alguma coisa. Houve briga pelo último pedaço de pão dormido e pelo copo de café visivelmente aguado, de modo que metade do seu conteúdo se perdera no puxa-puxa. Foi preciso que um carcereiro interviesse para que os presos acalmassem seus ânimos. Ainda assim, alguns ficaram sem comer. Edgar sequer havia se levantado. Permanecera imóvel a observar a tudo e a todos enquanto se desenrolava toda aquela algazarra. Após ter acalmado os presos com promessas de tratamentos nada agradáveis, o carcereiro parou à frente de onde Edgard se encontrava sentado no chão duro e frio. Ele a essa altura já havia abaixado a cabeça. E com as mãos envoltas nas pernas tentava entender. Teve a impressão de que alguém o olhava e ensaiou um leve levantar de olhos. O carcereiro, com ar de superioridade e um jornal na mão, ria calado até que a leitura em voz alta da manchete do jornal que trazia consigo perfurou o silêncio e, como um punhal, atingiu em cheio o estômago de Edgard, deixando-o sem ar:

PRESO NO RJ ESCRITOR FAMOSO ACUSADO DE ASSASSINATOS EM SÉRIE

EDGARD WERNICKE, O CÉLEBRE AUTOR DE ROMANCES POLICIAIS, FOI PRESO NA NOITE DESTA QUARTA-FEIRA (30) PELO ASSASSINATO DE CERCA DE 20 MULHERES NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. SEGUNDO OS POLICIAIS RESPONSÁVEIS PELA INVESTIGAÇÃO, WERNICKE TERIA CONFESSADO EM SUAS OBRAS DETALHES NÃO REVELADOS PELOS PERITOS.

                Aquelas palavras não faziam sentido para Edgard. Ele se lembrava apenas de estar no lançamento de seu último livro com uma taça de Champagne na mão quando os policiais entraram e anunciaram a sua prisão. Na delegacia, foi imediatamente levado para a sala de interrogatório, mas lá também ele não havia conseguido compreender o que ocorria. Tudo para ele eram flashes desconexos. Agora imaginava que poderia ser efeito do álcool, mas também não lembrava de ter bebido tanto assim.

Terminada a leitura da manchete, o silêncio se reestabeleceu, mas por pouco tempo. Foi novamente o policial que fez as honras: Mas não é que a minha hospedaria está ficando prestigiada? Quem diria que eu seria o anfitrião de uma celebridade? O silêncio de Edgard incomodou a autoridade. O que é? As instalações não estão lhe agradando? Ou será que o escritor perdeu as palavras? Os demais presos gargalhavam quando um deles comentou: Ele não disse uma palavra nem se levantou desde que veio pra cá. Dormiu pouco e, desde que acordou, tá aí sentado com essa cara de louco. Ao que um outro completou: Deve estar na secura de matar mais alguma mulher! E aproximando-se de Edgard para fitá-lo bem nos olhos: Não é desse veneno que tu gosta? Essas palavras promoveram uma tempestade no semblante de Edgard. Ele se levantou num salto e empurrou o outro preso, que caiu no chão levando consigo mais dois outros que estavam próximos: Eu sou inocente. INOCENTE. Entenderam? Não sei do que estão falando ou o que aconteceu. Mas sei que vão se arrepender profundamente. Meus advogados irão cuidar disso.

O policial que até então observava tudo calado soltou uma imensa gargalhada e, batendo palmas, falou: Ótima continuação para o seu romance. Não é muito original, é verdade. Mas é boa... Um assassino em série, um psicopata que se diz inocente e tenta convencer a todos a sua volta. Pode ficar interessante. Edgard permaneceu imóvel enquanto o policial se deliciava com suas elucubrações até que este, por fim, suspendeu o escárnio e, olhando fixamente nos olhos de Edgar, disse: Inocente? Aqui só tem inocente. Todos esses animais que estão enjaulados aqui são inocentes, um mais inocente que o outro. Mas eu acho que o senhor está precisando aprender a como responder com cortesia à excelente recepção que lhe está sendo dispensada em minhas instalações. Ele olhou para os três presos que permaneciam caídos e disse: É todo de vocês. Tratem com carinho. E saiu calmamente. Os presos se levantaram, também sem muita pressa, os demais homens que estavam na cela – cerca de 20 – se juntaram a eles e naquela manhã Edgard levou a sua primeira surra. Quando os prisioneiros terminaram, o escritor, ensanguentado, rastejou até o canto em que se encontrara antes e seguiu calado durante todo o dia. Nem um gemido sequer ouviu-se dele. O único contato que teve com seus companheiros de cela, se é que isto pode ser chamado de contato, ocorreu quando, sem que percebesse, uma voz rouca se aproximou do seu ouvido e sussurrou: Se falar para alguém, a próxima será pior.

À noite, naquele mesmo dia, Edgard foi novamente chamado para depor. O delegado vendo os inúmeros hematomas e a roupa ensanguentada perguntou o que havia acontecido. O carcereiro que instigara os outros presos também estava na sala. Edgard o olhou e disse: Eu caí. Caiu? Do vigésimo primeiro andar, rapaz? Apenas caí, respondeu Edgar. Meu Deus do céu, Carlos – esse era o nome do policial carcereiro –, chama um médico e providencie a troca desse prisioneiro de cela imediatamente. Perdão, chefe, mas não há outra cela. Todas estão lotadas – informou o policial. Dá o seu jeito. Muda prisioneiro de cela. Mas esse aqui não irá voltar para a mesma de onde veio. Sim, senhor – disse Carlos se retirando enquanto lançava um olhar fulminante em Edgard. O delegado parecia saber que havia algo muito estranho acontecendo ali, talvez por isso, uma vez sozinhos, tenha novamente questionado Edgar sobre o que havia acontecido. Mas este, embora reconhecesse que aquele ali parecia ser confiável, emitiu apenas uma frase: Quero ver meus advogados. Amanhã, respondeu o delegado, hoje você verá o médico.

Após ser atendido pelo médico, Edgard foi encaminhado para a nova cela, que estava tão lotada quanto a anterior. Porém, apesar das piadinhas que teve de ouvir, dessa vez ninguém ousou se aproximar dele. Imaginou que Carlos lhes havia avisado que o delegado estava desconfiado e que por isso ninguém deveria tocar em um fio de seu cabelo sequer.

A noite foi longa. Vez ou outra, uns ruídos estranhos interrompiam o silêncio devastador. Ora alguém, da sua cela ou das vizinhas, ia se aliviar na latrina e não media esforços para ser o mais barulhento possível, ora os sons se assemelhavam a sussurros e gemidos. Animais, pensava Edgard, bando de animais. Embora estivesse com os olhos o tempo todo fechados, Edgard não conseguia dormir. Se os mantinha selados, era porque assim tinha a impressão de que estava protegido e de que ninguém o importunaria. Ele só precisava ficar um tempo sozinho com seus pensamentos para entender tudo aquilo que estava acontecendo. Edgard não sentia dor física, mas uma de outra ordem que o consumia por dentro. Uma dor moral, a dor de quem estava sendo injustiçado sem sequer saber o porquê. Ele tinha certeza de que tinha ocorrido um equívoco. A polícia estava enganada, prendera o cara errado enquanto o verdadeiro assassino estava solto por aí, talvez até em busca de uma outra vítima. Mas o que especificamente havia feito com que a polícia cometesse tamanho engano? E por que a sua cabeça doía tanto? Ele sabia que não era apenas devido à surra que levara mais cedo, porque antes disso ele já não se sentia bem. A notícia do jornal cuja manchete o policial havia lido em voz alta de manhã mencionava os seus livros e, durante o interrogatório, o delegado havia inúmeras vezes lhe questionado sobre detalhes específicos dos enredos dos seus três últimos romances. Mas o que isso tinha a ver com a sua prisão? Os livros são ficção. Será que as pessoas não entendem isso? Seria possível que ele tivesse sido preso única e exclusivamente porque havia algumas coincidências entre o enredo dos seus livros e assassinatos sobre os quais ele jamais ouvira falar?

A cabeça de Edgar começou a doer absurdamente, e os pensamentos lhe fugiram. Pouco tempo depois ele acabou caindo no sono. E dormindo, sonhou com o dia em que a sua vida começou a mudar: o dia em que achou o primeiro caderno. Há cinco anos Edgard era um sujeito invisível. Entrava e saía de empregos. Já havia atuado nas mais diversas áreas, mas em nenhuma havia obtido sucesso. Não tinha parentes ou amigos. Nem mesmo um cachorro. O pai o abandonara ainda quando criança e a mãe falecera há cerca de 10 anos, deixando-lhe algumas economias com que sobrevivia sem mordomias. Contava Edgar à época 37 anos. Era um homem sem graça, introspectivo, que aparentava ter mais idade do que realmente tinha. Vivia com os cabelos desgrenhados, os óculos sujos e com as roupas amarrotadas. Certo dia, a senhoria do apartamento onde vivera durante toda a sua vida disse que precisava do apartamento para uma filha que iria casar. Edgard precisou então procurar um novo lugar para morar. Algum tempo depois estava de mudança para um apartamento pequeno em Botafogo. Fez tudo sozinho. Embalou os seus pertences, desmontou os poucos móveis, contratou o caminhão de mudança e até ajudou a descarregar tudo no seu novo lar. Apesar do transtorno de ter de se mudar, aquilo de alguma forma havia feito com que Edgard se sentisse útil. Foi necessário que ele se mexesse, que fizesse tudo por si mesmo. E até aquele momento parecia estar dando certo. Mais do que nunca, ele se sentia vivo.

A despeito da sua aparência largada, Edgard era extremamente metódico e organizado com as suas coisas. Por isso perdeu horas colocando tudo no seu devido lugar. Durante a arrumação do quarto, encontrou um taco solto. Levantou-o para verificar se era possível recolá-lo facilmente e foi então que percebeu que, na verdade, se tratava de um esconderijo. Sob o piso, havia guardado um pequeno caderno. Estava empoeirado e suas folhas estavam um pouco amareladas do tempo. Edgard o folheou e viu que tinha todas as páginas escritas. Pensou que talvez fosse do antigo morador e jogou-o para o lado a fim de terminar a sua arrumação.

À noite, quando foi apagar a luz da luminária que ficava na mesinha de cabeceira ao lado da cama, viu novamente o caderno. Como estava sem sono, resolveu mais uma vez folheá-lo e ler algumas partes. Para sua surpresa, era uma história, um romance policial que, narrado em primeira pessoa, trazia a ótica do assassino sobre os seus crimes. Tudo, desde a escolha da vítima – sempre mulheres – até o modus operandi empregado para matá-las, no primeiro dia de cada estação do ano, fizesse chuva ou sol, era descrito detalhadamente. Quatro mulheres eram mortas por ano, quatro mulheres escolhidas a dedo e cujos hábitos diários eram acompanhados durante os quatro meses da estação anterior até que chegasse o grande dia. Da mesma forma, eram explicados com clareza todos os artifícios empregados pelo assassino para despistar as autoridades e omitir os corpos. E tudo isso estava escrito de uma forma tão instigante que Edgard não largou o caderno até que tivesse terminado de lê-lo por inteiro. Quando terminou, ainda estava extasiado. Era uma história incrível que subvertia a lógica dos romances policiais tradicionais. De súbito, ele se levantou da cama e foi até o local do quarto onde havia encontrado o caderno sob o taco solto. Foi então que percebeu que outros três tacos também estavam soltos e que havia no vão embaixo deles mais três cadernos – igualmente empoeirados, mas bem menos ou quase nada amarelados. A sensação que sentiu ao encontrá-los era indescritível. Correu para a cama e pôs-se a lê-los imediatamente. E o fez, assim como fizera com o primeiro, de uma tacada só.

Quando terminou de ler o quarto caderno, o dia já havia amanhecido. Edgard, porém, seguia sem sono. Ao contrário, estava elétrico depois de ler tudo aquilo. Certo de que estava diante dos originais de um best-seller, foi até a sala pegar o notebook a fim de pesquisar sobre o seu autor. Ligou-o e começou a procurar o registro de qualquer coisa parecida com aquilo que já tivesse sido publicada, mas seu esforço resultou inútil. No mesmo dia, à tarde, lembrou de entrar em contato com o proprietário do apartamento. Talvez ele pudesse lhe dar alguma informação sobre o paradeiro do antigo morador. Era um senhor já de idade – disse-lhe o proprietário. Ele vivia só com um enfermeiro. A família vinha raramente visitá-lo. O velho há anos encontrava-se muito enfermo e faleceu um mês antes de Edgard se mudar para lá. O proprietário não sabia nada sobre o possível paradeiro do enfermeiro.

Edgard não conseguia acreditar naquilo tudo. Ele tinha quatro grandes obras inéditas em suas mãos cujo autor aparentemente estava morto. Mas por que escrever tudo aquilo estando à beira da morte? Quanto tempo ele deve ter demorado para criar aquelas obras-primas? De onde viera tamanha inspiração? E aquela riqueza de detalhes? Era simplesmente inacreditável. Mas por que será que o seu autor nunca as publicara? Será que não reconhecia nelas o seu altíssimo valor? Seria falta de ambição de tornar-se reconhecido nacional e, quem sabe, até internacionalmente, já que estava prestes a morrer? Ou seria apenas vergonha de ver um texto seu publicado? Nada disso importava mais. Por algum motivo aqueles cadernos haviam sido colocados em seu caminho. Tudo o que sabia era que o mundo não poderia ficar mais nem um minuto sem ter acesso àquelas obras.

Pegou novamente o computador e começou a digitar a primeira história. Deu-lhe o nome de O assassino sazonal e dividiu-o em quatro capítulos intitulados Primavera, Verão, Outono e Inverno. Ao terminar, ligou para um ex-colega seu da faculdade que era diretor de uma grande editora. Edgard não tinha amigos de verdade, mas sabia que Mário Bitencourt, o maior editor brasileiro, não deixaria uma grande oportunidade passar se a visse. Ele ligou, mas a secretária lhe informou que Mário não podia atender. Ele insistiu, pediu que ela dissesse a ele que era o seu amigo Edgard Santos – Wernicke era nome artístico escolhido num site de sobrenomes alemães por ocasião da publicação do primeiro romance –, que os dois haviam estudado juntos... mas nada adiantara. A secretária por fim soltou um sinto muito seco e desligou o telefone. Edgard, porém, estava decidido a fazer com que o mundo lesse aquelas histórias e – é claro – a colher os louros que adviriam disso. Então, no dia seguinte de manhã, estava de prontidão na porta da editora de Mário e, quando o avistou, não hesitou. Aproximou-se cumprimentando-o como se fossem melhores amigos. Mário demorou um tempo para reconhecê-lo e, quando finalmente conseguiu, fez uma cara meio sem graça como se não entendesse o porquê de toda aquela intimidade repentina. Recusado o convite para um café na cafeteria da esquina, Edgard teve de improvisar. Explicou que vinha há anos construindo uma trama policial perfeita com um assassino em série que narrava a história a partir do seu ponto de vista, num estilo semelhante ao de Edgard Allan Poe, algo sem igual no país. E completou dizendo que, como agora, após anos de pesquisa, finalmente o primeiro livro estava pronto, ele havia se lembrado do seu grande amigo da época da faculdade e, sabendo que ele era um grande editor, não poderia conceder esse privilégio a outro. Mário, a princípio, não se mostrou interessado, disse que no Brasil o mercado para romances policiais era pequeno, mas, diante da insistência de Edgard, acabou aceitando ficar com os originais para lê-lo assim que tivesse tempo.

Esse momento, porém, parecia nunca chegar. Edgard ligara toda semana durante cinco meses para a editora de Mário e a resposta dada pela secretária era sempre a mesma: o Sr. Bitencourt ainda não teve tempo. Aquela espera foi enlouquecendo-o até que um dia, quando ele menos esperava, recebeu uma ligação pessoal de Mário pedindo que comparecesse em seu escritório no dia seguinte. Dito e feito. O editor também ficara impressionado com a qualidade do texto, se comprometeu em publicá-lo e registrou em contrato que Edgard deveria escrever mais quatro livros da série, um por ano. Edgard estava tão feliz que nem pensou na hora que só tinha quatro cadernos. Assinou o contrato e, pouco tempo depois, O assassino sazonal estava nas livrarias de todo o país e, logo em seguida, também do mundo. O livro, bem como as suas sequências, tornou-se uma verdadeira febre mundial. Todos queriam saber como e quando aquele assassino insano seria preso, mesmo sabendo que a sua prisão significaria o fim da série. É que o protagonista anti-herói despertava nos leitores a mais profunda aversão de modo que a certeza de que um dia ele pagaria pelos seus crimes era um pensamento que os confortava.

Com o sucesso da série, Edgard ficou famoso. Tinha 42 anos. Agora era um homem charmoso, seguro de si e altamente sociável. Andava sempre impecável, com os melhores ternos e as mais finas camisas. Já não usava mais óculos, e o cabelo estava a qualquer hora do dia meticulosamente penteado. Para divulgar seus livros, viajou o mundo inteiro, deu entrevistas a sites, programas de fofoca, jornais e revistas e era convidado para os eventos mais importantes do país. Chegou até mesmo a receber do prefeito o título de cidadão ilustre da cidade. Enfim, sua vida era totalmente diferente daquela que vivia há pouco mais de quatro anos. E foi então justamente no dia do lançamento do quarto volume da série, ou seja, do último caderno que ele havia encontrado, que Edgard foi preso.

O dia amanhecera. O café chegara. Dessa vez, Edgard, que não se alimentava há quase dois dias, conseguiu pegar um pedaço de pão. Todavia, mal começara a comer, foi chamado pelo carcereiro. Seu advogado está aí. Edgard levantou-se e foi guiado até uma sala onde poderia falar a sós com seu advogado. Roberto de Magalhães Castro era, na verdade, advogado da editora de Mario Bitencourt, mas prestava serviços pessoais a Edgard, desde que não houvesse conflito de interesses. A sala era escura e tinha apenas uma mesa no centro com uma cadeira de cada lado. Roberto estava sentado e, quando viu Edgard entrar, levou um susto e levantou-se automaticamente para ajudá-lo a se sentar. Caramba, Edgard. O que aconteceu com você? Não foi nada. Eu caí, respondeu Edgard. Obviamente, Roberto não acreditou naquela história, mas antes que conseguisse fazer uma nova pergunta, Edgar o interrompeu: O que está acontecendo, Roberto? Você não sabe?, perguntou o advogado. Claro que não. Esses policiais ficam falando um monte de coisa sem sentido, perguntando dos meus livros. Disseram que houve um assassinato. Mas eu não entendo o que eu tenho a ver com isso. O advogado o corrigiu: Um não, foram 20. E os dezesseis primeiros aconteceram exatamente como descrito nos quatro volumes do seu livro. Como assim, Roberto? Que assassinatos são esses de que eu nunca ouvi falar? Não faz sentido. E como alguém pode ter matado conforme o enredo do quarto volume se ele foi lançado ontem? Bem, disse Roberto, sentando-se na cadeira em frente à de Edgard, aí é que está a questão. Os assassinatos vêm acontecendo há anos, mas nunca foram noticiados, porque até essa semana não se sabia que eram assassinatos. Imaginava-se que as vítimas apenas haviam desaparecido e a polícia ainda não tinha conseguido ligar os casos.

Até essa semana? O que aconteceu nessa semana que mudou tudo?, perguntou Edgard. A polícia recebeu uma denúncia anônima sobre o lugar onde estavam escondidos os doze primeiros corpos. A pessoa que denunciou disse que, para encontrá-los, a polícia deveria ler os seus livros. A investigação iniciou, e os corpos foram encontrados exatamente nos lugares em que o assassino sazonal desovava as suas vítimas. Não é possível!, gritou Edgard, batendo fortemente com a mão na mesa e levantando-se. Não é possível. Ele repetia levando as mãos à cabeça. O advogado continuou: Tem mais. Os laudos das autópsias identificaram que as causas das mortes também foram as mesmas descritas por você nos romances. É um imitador! Será que ninguém pensou nisso? Alguém leu os meus livros e está imitando os crimes! Chama o delegado! Ele tem que me soltar. Há um assassino louco solto nas ruas. Edgard, senta. Você não vê, Roberto. Eu fui preso injustamente! Edgard, os livros... O que tem os livros, Roberto? Eles foram publicados após as mortes acontecerem. Após? O que você quer dizer com isso? Não há como alguém ter copiado o modus operandi. Edgard se sentou desolado. Não conseguia entender como aquilo poderia estar acontecendo com ele.

Você disse que apenas doze corpos foram encontrados. Na verdade, agora dezesseis. No dia em que te prenderam, no lançamento do quarto volume da série, os policiais apreenderam também um exemplar do seu livro. A partir dele, quatro novos corpos de vítimas foram encontrados. Meu Deus. Meu Deus., falava Edgard enquanto batia com as duas mãos na própria cabeça. O que é isso? O que está acontecendo? Até que cessou o movimento e, com as duas mãos ainda na cabeça, olhou para Roberto e perguntou: Você não havia falado que eram vinte assassinatos? Sim. No dia da sua prisão, a polícia recebeu uma nova denúncia anônima sobre o paradeiro dos originais do quinto livro. Quinto livro? Que quinto livro? Não existe um quinto livro! Existe sim, Edgard. Estava no seu apartamento, sob um taco solto no piso do seu quarto, embaixo da cama. Edgard arregalou os olhos. Parecia que ele havia visto um fantasma. Estava pálido e quase não respirava. On...onde é que você disse que estava? No seu quarto, sob um piso solto. Não era possível. Não era possível. Depois que ficara famoso, Edgard não havia se mudado do apartamento de Botafogo. Ele gostava dali. Era bem localizado. E, além disso, era graças àquele lugar que ele havia saído do anonimato. Mas tinha certeza de que não havia mais nenhum livro ali. Depois que assinou o contrato com a editora, ele voltou para casa e arrancou todos os pisos em busca de um quinto volume. Não havia nada lá. Ele tinha certeza. Mal pensou tudo isso, veio-lhe uma brilhante ideia. Eu preciso ver o manuscrito, disse. Preciso. E.. e quero que você peça um teste de caligrafia. Assim vai ficar provado que eu não... Edgard, quem disse que era um manuscrito? O quinto volume encontrado estava digitado. A polícia ainda o está lendo para descobrir os paradeiros dos corpos... Digitado? Você leu esse livro, Roberto? Ainda não, porque, como disse, a polícia ainda está fazendo um levantamento dos lugares de desova. Eu não escrevi esse livro, Roberto. Eu não escrevi.

Edgard, os policiais me anteciparam algumas informações sobre esse volume. Fala, homem! O que pode ser pior do que tudo o que já está acontecendo. Nele, o assassino se identifica como o autor das histórias e diz que os assassinatos são um experimento, uma espécie de laboratório para os seus livros. Ele também revela que é usuário de uma droga alucinógena que faz com que consiga fantasiar os seus crimes sem sentir remorso... Edgar ouvia tudo calado, mas a pausa de Roberto o fez imaginar que poderia haver mais. O quê? Que mais, Roberto? Fala! Foi encontrada uma grande quantidade dessa droga no seu apartamento. Também encontraram luvas de látex brancas, seringas, agulhas e uma substância psicoativa usada nas vítimas para deixá-las em estado catatônico enquanto o assassino as torturava.  Cloridrato de Prometazina! Exclamou, Edgar. É um sedativo liberado usado para produzir sono ou aliviar a dor, quando combinado com analgésicos, mas administrado em grandes quantidades leva à catatonia. Roberto olhava assustado para Edgard enquanto ele falava tudo isso. O quê, Roberto? Eu escrevi os livros, esqueceu? Sei todos os detalhes. E, assim que terminou de falar essas palavras, percebeu que seria impossível provar a sua inocência. Ele escrevera os livros. Ele sabia de todos os detalhes dos assassinatos que aconteceram antes mesmo dos livros serem publicados. Somente ele.

Edgard, disse Roberto. Você lembra de ter passado por perícia médica assim que chegou aqui? Acho que sim. Dentre outras coisas, eles fizeram um exame de sangue. Veja. Este é o laudo. Edgard pegou o papel e o leu. Você vê, Edgard? Deu positivo para LCD. Quando você foi preso, você estava sob efeito da droga que o assassino revelou usar no quinto livro. Era por isso que estava tão atordoado no dia anterior, por isso suas lembranças estavam tão confusas e por isso também não conseguia entender o que os policias lhe falavam. Alguém o havia drogado no coquetel de lançamento do quarto volume da série. Roberto – disse Edgar se levantando, indo em direção ao advogado e segurando-o pelos braços –, eu preciso ver esse livro! Tem alguém querendo me incriminar. Eu preciso saber o que está escrito lá. Não sei, Edgard. O livro foi arrolado como evidência. Acho difícil que eu consiga uma cópia. Você precisa.

No dia seguinte, Edgard recebeu uma visita inesperada. Quando chegou à sala, a mesma em que estivera com seu advogado no dia anterior, viu um homem desconhecido vestido todo de branco. O homem pediu ao policial que esperasse lá fora. Você é médico?, perguntou Edgard. O homem abriu uma maleta preta, calçou luvas brancas de látex, pegou um estetoscópio e, fingindo auscultar Edgard, falou baixinho no seu ouvido: Eles acham que sim. Mas você não é? Digamos que eu sou um faxineiro que, dentre outras coisas, trabalha na área da saúde. Mas quem é você de verdade? Um fã, Sr. Wernicke, o seu fã número um. E trouxe um presente para você. Nesse momento, o homem abriu novamente a maleta e tirou de dentro um maço de folhas, que entregou a Edgard. Na primeira folha, em caixa alta e negrito, estava escrito: Assassino sazonal: o ato final. Edgard arregalou os olhos, levantou a cabeça e olhou para o homem. Guarde-o sob a roupa, Sr. Wernicke, não queremos que nossos amigos peguem isso de você. Edgard automaticamente fez o que o homem lhe aconselhou. Enquanto isso, o homem voltava a abrir a maleta. Sabe, na verdade, tenho mais um presente. Dela retirou algo pequeno que Edgard não conseguiu identificar e colocou em seu bolso. Mas esse aqui você só verá mais tarde. Em seguida, o falso médico bateu à porta onde se encontrava o policial. Era Carlos. Veja, meu amigo – tirando as luvas e colocando-as junto com o estetoscópio na maleta –, esse aqui está muito bem de saúde. O advogado dele exagerou ao solicitar os meus serviços. Pode levá-lo de volta para a cela.

No caminho de volta, Carlos não hesitou em alfinetar Edgard: Então, Sr. Escritor, gostando das nossas acomodações? Edgard não respondeu. Eu ouvi dizer que o grand finale ainda está por vir. Na cela, Edgard sentou-se no mesmo canto de sempre. Não quis comer nem no almoço, nem na janta. E os outros presos agradeceram por poderem repartir mais aquela refeição. À noite, depois que todos estavam dormindo, Edgard retirou o maço de folhas que ainda estava debaixo da camisa. Estava escuro, e ele precisou engatinhar até as grades da cela para aproveitar uma nesga de luz que vinha do final do corredor onde ficavam os carcereiros. Fez tudo da forma mais silenciosa possível para que não fosse percebido pelos demais presos ou pelos policias. Começou a leitura e, de fato, ali constava tudo o que Roberto havia dito. Os assassinatos, as drogas... até mesmo a invasão à casa dele e o lugar exato onde encontraram os originais do quinto livro. Os nomes dos personagens eram outros, mas a semelhança com a realidade era indiscutível. Indiscutível era também a originalidade daquele texto, que tinha o mesmo estilo e mantinha a coerência com as histórias anteriores, mesmo com o quarto volume, que havia sido lançado somente no dia em que havia sido preso. Não havia dúvida: aquele volume havia sido escrito pela mesma pessoa que escreveu os demais, e o assassino era o verdadeiro autor das histórias. Mas quem era ele e como havia chegado até Edgar?

Drogas. Luvas. Seringas. Procedimentos médicos... “um faxineiro que trabalha na área da saúde”. Foi então que o óbvio de repente se desenhou de forma lúcida na sua frente. Meu Deus, é o enfermeiro do antigo morador do meu apartamento! É ele. Só pode ser ele. Ele é o assassino e resolveu se vingar por eu ter publicado as suas histórias. A descoberta o deixou aturdido. Apesar de saber que essa era a verdade, sabia também que não tinha provas e que ninguém acreditaria nele. Até mesmo os manuscritos dos volumes anteriores ele já havia jogado fora. No mais, tinha dúvida se realmente queria que todos soubessem que ele não era o verdadeiro autor das histórias. Afinal, aquelas histórias haviam lhe dado tudo o que tinha, tudo o que era. Ele era aquele homem, o Edgard Wernicke, homem interessante, admirado, invejado. Não o Edgard Santos. E ele só pôde ser Wernicke porque escreveu aquelas histórias. Negar a sua autoria seria voltar a ser o outro. E será mesmo que ele queria isso? Será que ele suportaria voltar a ser invisível? Foi então que se lembrou de ler o último capítulo do quinto volume.

Deus fez o mundo em seis dias e desde então o homem o vem destruindo. Há pessoas demais nesse planeta, pessoas demais que não valorizam a dádiva que é viver. A procriação indiscriminada será o nosso fim, não a nossa continuação. 20 mulheres. 20 mulheres que deixaram de procriar. Quantas crianças eu salvei de virem a esse inferno? Quanta destruição eu impedi que elas cometessem se tivessem vindo? Eu sou o faxineiro que varre do mundo a sua escória. Ninguém nunca nota o faxineiro. Daí a genialidade da minha obra. Uma obra audaciosa, é certo. Com uma trama perfeita, sem uma única falha. E agora que todos sabem quem eu sou. Que o mérito por toda essa magnífica ópera foi devidamente atribuído ao seu verdadeiro maestro. Eu posso, enfim, descansar em paz. E descanso ciente de que depois de mim outros virão, porque, embora essa apresentação tenha chegado ao seu ato final, a sinfonia, esta jamais estará acabada.

Ao terminar de ler o último parágrafo do último capítulo, Edgard permaneceu atônito por um tempo. Sua respiração estava acelerada. Não sabia o que pensar. Ele vai se matar? É isso? Fez tudo isso para se matar e eu permanecer aqui, nesse inferno, para o resto da vida? Recolheu as folhas e coloco-as novamente debaixo da camisa. Nesse momento, passou a mão involuntariamente pelo bolso e sentiu um pequeno volume. O segundo presente do enfermeiro!, lembrou-se. Edgard retirou-o do bolso. Era um pequeno frasco com um líquido transparente dentro. Em sua superfície, um rótulo branco no qual havia escrito apenas uma palavra: PAZ. Edgard não pensou duas vezes. Abriu o frasco e, numa golada só, tomou todo o seu conteúdo.


(Re)cortes da vida cotidiana (set/2019)

Ser professor por amor é o que todos esperam de nós.

Não pense na crise, trabalhe! - disse o Fora Temer.

Quem ama o que faz está sempre de férias! - me diziam os militares.

Trabalhe até morrer, seu país precisa de você - diz o Ele não.

A vida apenas, sem mistificação - certo mesmo estava Drummond.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Antes só do que má acompanhada (junho/2016)


Ela trazia o coração partido do seu último relacionamento. A dor fez com que levantasse um muro para protegê-lo. Ele chegou devagar, fingindo-se de bom moço. Era bem-sucedido e cobiçado por todas as funcionárias da empresa. Isso não lhe enchia os olhos, mas ele insistiu. Apesar da fama de mulherengo, bonito não era, mas tinha bom papo. Era considerado um exemplo por todos e dizia querer casar e ter filhos.

Aos poucos ele a convenceu. Por que, não? Ela disse: Eu não sou como as outras. E ele respondeu: Eu sei. O álcool fez com que ela baixasse a guarda, e eles se beijaram. Assim aconteceu uma, duas, três vezes. E cinco meses depois ainda estavam “juntos”. Eles pareciam um casal. Ele a apresentara a família, a levava para o trabalho todos os dias no seu carro. Eles se tratavam como se fossem um casal, exceto quando ele marcava com ela e a deixava esperando ou quando ele preferia sair com os amigos sem convidá-la. Quando isso acontecia, ela tentava terminar aquilo que achava que existia. Ele dizia que precisava dela e pedia mais uma chance. Como o muro já havia caído, ela aceitava.

Certo dia, depois de um desentendimento, ele publicou numa rede social que estava numa boate. Era dia de semana. E ele não havia lhe falado nada. Cansada daquilo tudo que já não parecia ter mais futuro, ela decidiu deletá-lo da sua vida. Dois dias depois, eles se encontraram numa festa. Ele, de mão dada com a ex, como se fossem um casal. Ela passou por eles, o olhou e o cumprimentou de cabeça erguida e um tanto quanto aliviada. Afinal, antes só do que mal acompanhada.

terça-feira, 1 de maio de 2018

No dia do trabalho, uma reflexão


A gente trabalha demais e vive de menos, se diverte de menos, aproveita a família, os amigos e a vida de menos. A gente trabalha demais e, na maioria das vezes, nós não temos o nosso esforço e dedicação reconhecidos. A gente sai para beber, comer, dançar e jogar papo fora de menos, e nos acostumamos com isso, porque a vida toda ouvimos que crescer era isso, que era exatamente isso que devíamos fazer depois de anos e anos de estudo. Afinal, estudamos para quando crescermos termos uma profissão. Crescemos, temos uma profissão, deixamos de viver e achamos isso normal. Devido à labuta diária, nós já não ouvimos mais música como antes: a música é de menos, a leitura também é de menos, assim com a poesia, a arte e o tempo dedicado à escrita. Nós levamos a vida a sério demais, o tempo todo, porque temos compromissos, responsabilidades, e esquecemos de rir de bobeira, de assistir filmes e programas bobos apenas porque sim. A correria do dia a dia é tanta que não nos permitimos deixar o tempo passar frouxo sem ficar com o sentimento de que ele foi perdido, como se perder tempo fosse algo ruim e trabalhar insanamente fosse algo bom. Trabalhando dia após dia, hora após hora, minuto após minuto, sendo cada vez mais exigidos por nossos patrões, deixamos de ter a paixão que tínhamos inicialmente pela profissão. Com o tempo, por causa dela, deixamos de fazer o que queremos fazer, para fazermos o que devemos fazer. A rotina e o excesso sempre estragam tudo. Enfim, vivemos para trabalhar, em vez de trabalharmos para viver, e a profissão, em vez de nosso meio de vida, se torna o nosso meio de morte. A questão é: no final, tudo isso terá valido a pena?


Thaís Costa
(1/5/2018)

Em tempos de pandemia, miniconto da solidão ou a luta diária para não surtar (abr/2020)

Meu pai tem 84 anos e é alcoólatra. Desde criança lido com isso e, depois de adulta, já o levei a diversos médicos para tentar combater ess...