terça-feira, 6 de junho de 2017

Mas no Brasil não há negros? (6/6/2017)


Thaís Costa
6/6/2017

“Mas no Brasil não há negros?”, me perguntou uma amiga tunisiana. Pouco antes, ela me explicava que, para minha surpresa, na Tunísia, um país africano, não havia negros. Na época, eu achava que todo e qualquer país desse continente fosse povoado por negros. Tinha consciência de que havia brancos também. Me lembrava das aulas de história sobre o Apartheid. Mas a inexistência de negros em determinados países me surpreendeu. Não sei se porque eu realmente não soubesse ou porque jamais havia parado para realmente pensar sobre isso. A gente, por mais esclarecido que seja ou tente ser, tende a ver a África não com um continente, mas como um todo, apagando a sua diversidade, a diversidade dos povos que lá habitam e das culturas que lá existem. Então, na minha ignorância, a evidência era que na África havia negros. E ponto.

A pergunta da minha amiga era, portanto, no sentido de dizer: “Ué, mas no Brasil também não há, certo?”. Na época, eu morava em Paris, numa casa de estudantes brasileiros, na Cité Internacionale Universitaire. Toda casa da cité tinha que ter 20% de moradores estrangeiros para promover o intercâmbio cultural. Foi assim que conheci a jovem Marriem. Ela viera da Tunísia para cursar o mestrado; e eu fazia um ano de estágio doutoral na Sorbonne Nouvelle. A pergunta de Marriem foi resultado de sua observação. Puro exame indutivo, podemos dizer. Na Maison du Brésil, onde morávamos, havia cerca de 100 residentes, a maioria doutorandos ou pós-doutorandos. Apenas 20% era estrangeiro. Sobravam 80 brasileiros. Pouquíssimos eram negros. Durante o ano em que lá passei, conheci dois: uma professora de teatro da UFBA e um doutorando de direito da UNB. Marriem, provavelmente, não os conhecera. Havia cinco andares na Maison, muitas vezes nossos círculos de amizade se limitavam aos 20 moradores do andar. E, no nosso andar, de fato, não havia negros. Então ela, provavelmente, concluiu: “se não há negros na Maison du Brésil, é porque não há negros no Brasil”.

A pergunta de Marriem, porém, despertou em mim uma reflexão muito além da mera observação da falha do seu raciocínio. O que significava dizer que, na Maison du Brésil, casa de estudantes brasileiros em Paris, habitada predominantemente por doutorandos e pós-doutorandos, não havia ou havia pouquíssimos brasileiros negros? O que essa pergunta de uma estrangeira dizia sobre o meu país? Um país em que a maioria da população é negra ou mestiça. Lembro que, na época, fiz um comentário no facebook relatando o meu espanto, e alguém reduziu tudo a tal meritocracia: as pessoas que estavam na Maison passaram por um processo seletivo, eram as mais capacitadas, merecedoras, portanto, de ali estarem. Isso nada tem a ver com a cor da pele. Não é mesmo? Respondi a esse comentário – de um brasileiro negro, diga-se – com uma pergunta: “mas, se é uma questão de mérito, por que não há, nesse grupo, negros brasileiros tão merecedores quanto os brancos brasileiros?”. 

Na mesma época, o caso de uma estudante negra e pobre da rede pública de ensino que obteve o primeiro lugar em medicina na USP – Ribeirão Preto, após obter um bônus total de 25% concedido pela USP a candidatos oriundos da rede pública (20%) e a negros, pardos e indígenas (5%), ganhava projeção na mídia brasileira. A jovem, que revelara até então acreditar não ter sido vítima de preconceito, comemorou o seu incrível – e, infelizmente, raro – feito publicando uma foto sua com a frase “a casa-grande surta quando a senzala vira médica” em sua página numa rede social. A foto viralizou. A menina recebeu muitos elogios, mas, também, muitos insultos. E mais uma vez eu pergunto: o que isso nos diz do nosso país? Seria essa menina um exemplo raro de meritocracia entre negros? A estudante relatou que obteve ajuda. Disse que fez curso pré-vestibular gratuito, que amigos da família ajudaram a custear um curso específico de matemática e que outros lhe deram livros. Isto é, a ajudaram naquilo que deveria ser um direito garantido seu. Mas os comentários em sua foto falavam do seu cabelo, da sua cor de pele. Desmereciam a sua conquista por ter sido “beneficiada”. Enfim... a casa-grande surtara. 

Antes de prosseguir, faz-se preciso aqui refletir sobre o que se entende por preconceito. Uma rápida consulta a qualquer dicionário nos levará aos seguintes sentidos: 1. ideia, opinião ou julgamento preconcebido sobre algo ou alguém, sem que haja conhecimento ou reflexão; 2. Atitude genérica de discriminação ou rejeição de pessoas, grupos e ideias com base no sexo, na raça, na nacionalidade, na orientação sexual etc.; 3. Intolerância; 4. Superstição.

Alguns comentários na página da estudante foram, portanto, evidentemente, preconceituosos. Seus algozes não tentaram refutar a sua postagem. Em vez disso, a condenaram por sua raça. E assim a jovem conheceu o preconceito. Mas será que só agora ela o conheceu de fato? Por que ela e a mãe negra, empregada doméstica, moram na periferia? Por que ela estuda em escola pública? Por que ela precisa da ajuda de terceiros para ter acesso à educação de qualidade? Por que ela e outros negros como ela? Por que não é comum ver negro na universidade, quiça na faculdade de medicina? Por que feitos como o dessa jovem, mesmo com a bonificação oferecida pela USP e com o sistema de cotas presente em outras universidades, são raros? Quantos médicos, engenheiros, juízes, almirantes ou generais negros nós conhecemos? E, na televisão, quantos negros temos e quais os papéis destinados a eles? Será a maioria dos negros incompetente, não merecedora de ocupar determinados espaços?

No século XIX, o médico Nina Rodrigues defendia a inferioridade dos negros com base no que chamava de “marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões e seções”. Tal posicionamento foi, inclusive, por muito tempo empregado para justificar a escravidão no país. Se justificamos a ausência de negros em determinados espaços devido à sua falta de mérito, não estaríamos anacronicamente empregando um argumento há muito refutado pela ciência?

Falamos muito no dia 13 de maio de 1888, mas ainda pouco refletimos sobre o que aconteceu do dia 14 em diante. Ideias como a de Nina Rodrigues impuseram a necessidade de branqueamento da sociedade, já que se entendia que a predominância de negros era o empecilho para o desenvolvimento do país. Os ideais liberais, por seu turno, impunham a mão de obra assalariada. Mas, dada a sua suposta inferioridade, não foi a mão de obra dos negros a escolhida. Estes já não nos serviam mais. Vieram os imigrantes europeus. E os negros livres para onde foram? O que sobrou para eles? Que campanhas de inserção do negro na sociedade foram realizadas naquela época e desde então? O processo de marginalização e, portanto, de discriminação do negro no Brasil não é um fato contemporâneo, mas a continuação de um passado de crueldade e negligência. Começou no dia em que o primeiro navio negreiro atracou em nossas praias. Depois, mesmo livres, foram marginalizados. E à margem permanecem dois séculos depois. O funcionamento desse preconceito, dessa discriminação, é muito pior do que aquele cujo sentido encontramos no dicionário. Pior, porque silencioso, não evidente. Pior, porque tem como pressuposto a negação de direitos, a negação do acesso a determinados espaços, negação esta que, historicamente naturalizada, muitas vezes passa despercebida, inclusive para aqueles a quem acesso e direitos são negados.

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