terça-feira, 6 de junho de 2017

A fome dos outros (6/6/2017)

Thaís Costa
6/6/2017

Era um dia comum. Terça-feira. Nesse dia, eu só trabalho presencialmente à tarde. Pela manhã, faço coisas de casa, preparo aulas, provas... Acaba sendo um dia mais corrido que outros em que fico o dia inteiro na escola. Tão corrido que acabei indo trabalhar à tarde sem almoçar. E de tanta fome que senti, acabei me esquecendo dela.
Após minha aula, resolvi fazer compras. Precisava de umas roupas de frio para trabalhar. Duas horas depois, quase 18h, finalmente entrei num fast-food japonês. Esfomeada, claro. Uma hora eu tinha que lembrar que estava apenas com o café da manhã. Fiz rapidamente o meu pedido e, sorrindo, brinquei com a atendente: Estou morrendo de fome, não almocei até agora. E ela respondeu: Eu também, mas eu já tirei a minha hora de almoço, não almocei porque não tinha marmita para trazer hoje. Engoli a seco. Meu sorriso, agora amarelo, vagarosamente, se desfez. Não consegui responder nada. Saí do caixa e me dirigi ao lugar bem em frente. Sentei-me e fiquei olhando para aquela mulher. Uma menina, na verdade, não devia ter muito mais que 18 anos.
Enquanto eu aguardava o meu pedido, as histórias dela passaram em minha cabeça. O que teria acontecido? Por que não tinha marmita para trazer? Teria sido a primeira vez? Ela não tinha dinheiro para comprar um salgado? Não poderia comer algo na empresa? Não teria ninguém para ajudá-la? Imaginei aquela moça em casa com pai, mãe, irmãos, um filhinho, talvez, todos sem marmita. Pensei... Pensei... Pensei em comprar algo para ela, mas me lembrei de que já havia tirado a sua hora de almoço. E se ela não gostasse de japonês? Eu poderia comprar um lanche em outro lugar. Mas, então, pensei de novo e cheguei à conclusão de que ela poderia se sentir ofendida se eu oferecesse algo.
Ela me chamou para pegar o meu pedido. Comi maquinalmente, olhando-a de forma fixa. Só conseguia pensar na fome daquela moça. Comi rápido, por vergonha, talvez. Vergonha por ter o que comer, por ter como pagar pela comida, aquela comida sem gosto que me descia forçosamente. Vergonha por pensar tanto sobre a fome dos outros e por não conseguir fazer nada. Saí de lá pensando ainda. E me lembrei das notas de Álvaro de Campos sobre Caeiro em que ele dizia que o Fernando Pessoa era “um novelo embrulhado para o lado de dentro”, alguém que está presente, mas que é como se não estivesse, alguém que “sente as coisas mas não se mexe”.
Identifiquei-me profundamente com Pessoa nesse momento. Ele, porém, teve a genialidade de criar tantas pessoas em uma só pessoa. A mim, restou-me apenas a mediocridade de ser incapaz de fazer algo diante da fome alheia. Eu era uma hipócrita.

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