Thaís Costa
Junho/2017
Leio, atônita, no jornal que um rapaz de 17 anos, após ter supostamente tentado roubar uma bicicleta, foi imobilizado por dois homens, que, não satisfeitos, tatuaram em sua testa: “Eu sou ladrão e vacilão”. Digo “supostamente” porque até o presente momento não foi comprovado que o crime foi de fato cometido pelo jovem. O caso foi extremamente comentado pela sociedade e despertou debates calorosos nas redes sociais. Mas por que esse caso teve tanta repercussão? Por um lado, porque inflou o ânimo dos justiceiros de plantão que acreditam que justiça se faz com violência. Por outro, porque incitou a discussão sobre a diferença entre legítima defesa e tortura, entre o que é justo e o que é fazer justiça.
O Código Penal brasileiro caracteriza a chamada
Legítima Defesa como um “Excludente de Ilicitude”. Isso significa dizer que a
pessoa que age em legítima defesa, mesmo que isso implique o homicídio de
alguém, não cumprirá pena porque se entende legalmente que não cometeu um crime.
O Artigo 25 do mesmo código apresenta a seguinte definição: “Entende-se em legítima defesa quem, usando
moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou
iminente, a direito seu ou de outrem”. Analisemos aqui a oração subordinada
adverbial condicional reduzida de gerúndio “usando moderadamente dos meios
necessários”. Ela determina que SOMENTE é considerado legítima defesa SE a
vítima ou testemunha empregar de forma MODERADA os meios necessários para
repelir agressão sofrida ou por sofrer. Já por moderado, entende-se que o ato
de defesa deve ser PROPORCIONAL à gravidade da ameaça ou agressão.
Assim sendo, o que a lei prevê como Legítima Defesa não consiste num salvo-conduto para que se pratiquem indefinidamente homicídios ou lesões corporais, tampouco permite que um cidadão, sentindo-se lesado, “faça justiça com as próprias mãos”. Nesse caso, portanto, uma vez que o jovem de 17 anos – um menor de idade segundo a lei vigente no Brasil – já estava imobilizado, o que se praticou contra ele, ao amarrá-lo, cortar os seus cabelos e fazer-lhe uma tatuagem na testa contra a sua vontade, NÃO se caracteriza, em hipótese alguma, como legítima defesa. Trata-se, ao contrário, de crime de tortura cometido contra um menor. O artigo 1º. da Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza”. Consiste, conforme dispõe o Artigo 5º inciso XLIII da Constituição Federal, em crime inafiançável, não sujeito a graça e anistia; um crime grave equiparado, segundo o Artigo 2º I e II da lei de crimes Hediondos, a um crime hediondo, sendo, portanto, vedado ao torturador o direito a indulto. Ou seja, a tortura cometida pelo tatuador e seu comparsa é crime muito mais grave, de acordo com a legislação brasileira, que o de roubo supostamente praticado pelo rapaz.
Assim sendo, o que a lei prevê como Legítima Defesa não consiste num salvo-conduto para que se pratiquem indefinidamente homicídios ou lesões corporais, tampouco permite que um cidadão, sentindo-se lesado, “faça justiça com as próprias mãos”. Nesse caso, portanto, uma vez que o jovem de 17 anos – um menor de idade segundo a lei vigente no Brasil – já estava imobilizado, o que se praticou contra ele, ao amarrá-lo, cortar os seus cabelos e fazer-lhe uma tatuagem na testa contra a sua vontade, NÃO se caracteriza, em hipótese alguma, como legítima defesa. Trata-se, ao contrário, de crime de tortura cometido contra um menor. O artigo 1º. da Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza”. Consiste, conforme dispõe o Artigo 5º inciso XLIII da Constituição Federal, em crime inafiançável, não sujeito a graça e anistia; um crime grave equiparado, segundo o Artigo 2º I e II da lei de crimes Hediondos, a um crime hediondo, sendo, portanto, vedado ao torturador o direito a indulto. Ou seja, a tortura cometida pelo tatuador e seu comparsa é crime muito mais grave, de acordo com a legislação brasileira, que o de roubo supostamente praticado pelo rapaz.
O segundo ponto que se faz preciso comentar diz
respeito à diferença entre ser justo e fazer justiça. Toda sociedade
estrutura-se em torno de leis que regem o convívio dos cidadãos que dela fazem
parte. Numa democracia, o conjunto de leis do chamado estado democrático de
direito constrói-se a partir de um processo legislativo e seu valor jurídico
tem por objetivo assegurar a estabilidade governamental e a segurança das
relações sociais estabelecidas entre cidadãos, instituições e empresas.
A Constituição Federal afirma a igualdade de
todos perante a lei e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(PIDCP), artigo 14, item 2, dispõe que “Toda pessoa acusada de um delito terá o
direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada a
culpa”. É nesse fundamento que também se baseia a nossa Constituição ao prever
o direito de todos a um julgamento justo por meio dos princípios do devido
processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da publicização. Ao se
prender em cárcere privado e torturar uma pessoa como punição por um crime pelo
qual ela não foi julgada perante a lei, nega-se, portanto, a ela o princípio da
isonomia, a pressuposição de inocência e o direito a um julgamento justo,
conforme previsto nas leis que regem a nossa sociedade.
Há quem diga, no entanto, que a negação desses
direitos se justifica porque, no Brasil, a Lei não funciona. Confunde-se aí “alhos
com bugalhos”. A insatisfação com a justiça brasileira, asseverada devido ao
momento político em que vivemos, não deve ser motivo para o descumprimento das
leis. Há, sim, os direitos individuais, mas acima deles estão as leis que têm
por objetivo assegurar o bem-estar social. Ou seja, para que se mantenha a
ordem, os anseios individuais devem estar submetidos à legislação em vigor,
caso contrário o convívio social seria simplesmente impossível. Sob a
perspectiva legal, então, é justo o
que está em conformidade com a justiça,
e esta diz respeito à aplicação das leis vigentes no país, ainda que observemos
falhas na sua aplicação.
Há, porém, um sentido de justiça do qual deriva
uma série de mal-entendidos. Segundo o dicionário Aulete, a palavra justiça
pode também ser compreendida como o reconhecimento do valor de alguém ou de
algo, isto é, como fazer justiça a alguém. O equívoco, portanto, que leva
determinadas pessoas a se autointitularem justiceiras ou a defenderem o ponto
de vista destas reside na consideração de que há pessoas que têm mais valor que
outras e que, por isso, é preciso lhes fazer justiça. Trata-se, pois, de um
critério subjetivo: eu não consigo imaginar como tatuar a testa de um jovem
pode combater a violência urbana, mas há quem assim considere que seja uma forma eficaz de se resolver o problema e de se fazer justiça. Note-se ainda aqui que
esse sentido vai contra o que está previsto em nossa legislação, segundo a qual
TODOS, sem exceção, são iguais. Sendo assim, segundo a lógica que rege o
funcionamento do nosso Estado e à qual todos nós enquanto cidadãos estamos
submetidos, se, por me achar superior a alguém, eu cometo um crime pensando
fazer justiça ou agir em legítima defesa, me torno igual ou pior que aquele que
critico e julgo inferior a mim. Logo, ao prender e torturar o rapaz como
punição para o seu suposto crime, o tatuador-torturador e o seu comparsa
tornaram-se criminosos inescrupulosos, desceram a um nível ainda mais baixo do
que aquele em que se encontrava o rapaz que prenderam, julgaram e puniram e, em
virtude disso, devem ser julgados e condenados no rigor da lei por crime de
cárcere privado e tortura contra menor.
Em outras palavras, se eu não concordo com as
leis ou com a forma como elas estão sendo aplicadas no país, não é
subvertendo-as que eu conseguirei mudar alguma coisa. Há maneiras legais de se
posicionar em relação a isso. Violência não combate violência, mas gera. Se
todos os cidadãos resolvessem fazer justiça com as próprias mãos, viveríamos no
caos, numa terra sem lei em que todos se julgam injustiçados e detentores de
mais direitos que os outros. Não adianta também tirar o foco da discussão
defendendo um crime porque não concorda com a maioridade penal vigente no
Brasil ou comparando o total arrecadado na vaquinha virtual que fizeram para
remover a tatuagem do rapaz com o de vaquinhas realizadas por/para pessoas que
foram vítimas da violência ou que têm doenças graves. Essas são outras
discussões/tragédias que em nada justificam o que aconteceu. Para além disso, há
outros fatores importantes a serem considerados aqui: o rapaz realmente cometeu
o crime? Por que antes de condená-lo nas redes sociais muitas pessoas
simplesmente ignoraram essa informação? Se cometeu, o que o levou a cometê-lo? A
família, em uma entrevista, afirmou que ele é dependente químico, tem problemas
psicológicos e estava há um mês fugido de casa. Como, então, o que fizeram com
ele pode resolver o problema da violência urbana ou da dependência química no
país? O que poderia, de fato, resolver? E como?
Em vez de se fazer essas perguntas e buscar uma
saída exequível e efetiva para o problema, a maioria das pessoas, do alto do
seu pedestal, ocupa-se em exercer um papel que não lhe cabe: julgar e condenar,
atacando os efeitos da violência urbana, e não as suas causas. Na primeira
metade do século passado, Bertolt Brecht fazia um questionamento que
hoje se faz mais atual do que nunca: “Que tempos são estes em que é preciso
defender o óbvio?”. E eu completo: que tempos são esses em que as
pessoas preferem achismos a argumentos? Tudo o que eu disse aqui deveria
ser óbvio, deveria ser senso comum, mas ainda é preciso dizer. E aqueles que o dizem, tentando tecer uma reflexão crítica sobre a situação em que vivemos, são rechaçados,
chamados de comunistas, esquerdopatas, ignorantes em lei e política. Que lei?
Que política? Se for a lei do mais forte, do mais ricos ou a política suja que vemos no nosso
dia a dia, obrigada. Prefiro ficar com a utopia e acreditar que é possível
lutar sem se perder.