quinta-feira, 15 de junho de 2017

Polemizando... ou simplesmente dizendo o óbvio (junho/2017)

Thaís Costa
Junho/2017


Leio, atônita, no jornal que um rapaz de 17 anos, após ter supostamente tentado roubar uma bicicleta, foi imobilizado por dois homens, que, não satisfeitos, tatuaram em sua testa: “Eu sou ladrão e vacilão”. Digo “supostamente” porque até o presente momento não foi comprovado que o crime foi de fato cometido pelo jovem. O caso foi extremamente comentado pela sociedade e despertou debates calorosos nas redes sociais. Mas por que esse caso teve tanta repercussão? Por um lado, porque inflou o ânimo dos justiceiros de plantão que acreditam que justiça se faz com violência. Por outro, porque incitou a discussão sobre a diferença entre legítima defesa e tortura, entre o que é justo e o que é fazer justiça.
O Código Penal brasileiro caracteriza a chamada Legítima Defesa como um “Excludente de Ilicitude”. Isso significa dizer que a pessoa que age em legítima defesa, mesmo que isso implique o homicídio de alguém, não cumprirá pena porque se entende legalmente que não cometeu um crime. O Artigo 25 do mesmo código apresenta a seguinte definição: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Analisemos aqui a oração subordinada adverbial condicional reduzida de gerúndio “usando moderadamente dos meios necessários”. Ela determina que SOMENTE é considerado legítima defesa SE a vítima ou testemunha empregar de forma MODERADA os meios necessários para repelir agressão sofrida ou por sofrer. Já por moderado, entende-se que o ato de defesa deve ser PROPORCIONAL à gravidade da ameaça ou agressão.
          Assim sendo, o que a lei prevê como Legítima Defesa não consiste num salvo-conduto para que se pratiquem indefinidamente homicídios ou lesões corporais, tampouco permite que um cidadão, sentindo-se lesado, “faça justiça com as próprias mãos”. Nesse caso, portanto, uma vez que o jovem de 17 anos – um menor de idade segundo a lei vigente no Brasil – já estava imobilizado, o que se praticou contra ele, ao amarrá-lo, cortar os seus cabelos e fazer-lhe uma tatuagem na testa contra a sua vontade, NÃO se caracteriza, em hipótese alguma, como legítima defesa. Trata-se, ao contrário, de crime de tortura cometido contra um menor. O artigo 1º. da Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza”. Consiste, conforme dispõe o Artigo 5º inciso XLIII da Constituição Federal, em crime inafiançável, não sujeito a graça e anistia; um crime grave equiparado, segundo o Artigo 2º I e II da lei de crimes Hediondos, a um crime hediondo, sendo, portanto, vedado ao torturador o direito a indulto. Ou seja, a tortura cometida pelo tatuador e seu comparsa é crime muito mais grave, de acordo com a legislação brasileira, que o de roubo supostamente praticado pelo rapaz.
O segundo ponto que se faz preciso comentar diz respeito à diferença entre ser justo e fazer justiça. Toda sociedade estrutura-se em torno de leis que regem o convívio dos cidadãos que dela fazem parte. Numa democracia, o conjunto de leis do chamado estado democrático de direito constrói-se a partir de um processo legislativo e seu valor jurídico tem por objetivo assegurar a estabilidade governamental e a segurança das relações sociais estabelecidas entre cidadãos, instituições e empresas.
A Constituição Federal afirma a igualdade de todos perante a lei e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), artigo 14, item 2, dispõe que “Toda pessoa acusada de um delito terá o direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada a culpa”. É nesse fundamento que também se baseia a nossa Constituição ao prever o direito de todos a um julgamento justo por meio dos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da publicização. Ao se prender em cárcere privado e torturar uma pessoa como punição por um crime pelo qual ela não foi julgada perante a lei, nega-se, portanto, a ela o princípio da isonomia, a pressuposição de inocência e o direito a um julgamento justo, conforme previsto nas leis que regem a nossa sociedade.
Há quem diga, no entanto, que a negação desses direitos se justifica porque, no Brasil, a Lei não funciona. Confunde-se aí “alhos com bugalhos”. A insatisfação com a justiça brasileira, asseverada devido ao momento político em que vivemos, não deve ser motivo para o descumprimento das leis. Há, sim, os direitos individuais, mas acima deles estão as leis que têm por objetivo assegurar o bem-estar social. Ou seja, para que se mantenha a ordem, os anseios individuais devem estar submetidos à legislação em vigor, caso contrário o convívio social seria simplesmente impossível. Sob a perspectiva legal, então, é justo o que está em conformidade com a justiça, e esta diz respeito à aplicação das leis vigentes no país, ainda que observemos falhas na sua aplicação.
Há, porém, um sentido de justiça do qual deriva uma série de mal-entendidos. Segundo o dicionário Aulete, a palavra justiça pode também ser compreendida como o reconhecimento do valor de alguém ou de algo, isto é, como fazer justiça a alguém. O equívoco, portanto, que leva determinadas pessoas a se autointitularem justiceiras ou a defenderem o ponto de vista destas reside na consideração de que há pessoas que têm mais valor que outras e que, por isso, é preciso lhes fazer justiça. Trata-se, pois, de um critério subjetivo: eu não consigo imaginar como tatuar a testa de um jovem pode combater a violência urbana, mas há quem assim considere que seja uma forma eficaz de se resolver o problema e de se fazer justiça. Note-se ainda aqui que esse sentido vai contra o que está previsto em nossa legislação, segundo a qual TODOS, sem exceção, são iguais. Sendo assim, segundo a lógica que rege o funcionamento do nosso Estado e à qual todos nós enquanto cidadãos estamos submetidos, se, por me achar superior a alguém, eu cometo um crime pensando fazer justiça ou agir em legítima defesa, me torno igual ou pior que aquele que critico e julgo inferior a mim. Logo, ao prender e torturar o rapaz como punição para o seu suposto crime, o tatuador-torturador e o seu comparsa tornaram-se criminosos inescrupulosos, desceram a um nível ainda mais baixo do que aquele em que se encontrava o rapaz que prenderam, julgaram e puniram e, em virtude disso, devem ser julgados e condenados no rigor da lei por crime de cárcere privado e tortura contra menor.
Em outras palavras, se eu não concordo com as leis ou com a forma como elas estão sendo aplicadas no país, não é subvertendo-as que eu conseguirei mudar alguma coisa. Há maneiras legais de se posicionar em relação a isso. Violência não combate violência, mas gera. Se todos os cidadãos resolvessem fazer justiça com as próprias mãos, viveríamos no caos, numa terra sem lei em que todos se julgam injustiçados e detentores de mais direitos que os outros. Não adianta também tirar o foco da discussão defendendo um crime porque não concorda com a maioridade penal vigente no Brasil ou comparando o total arrecadado na vaquinha virtual que fizeram para remover a tatuagem do rapaz com o de vaquinhas realizadas por/para pessoas que foram vítimas da violência ou que têm doenças graves. Essas são outras discussões/tragédias que em nada justificam o que aconteceu. Para além disso, há outros fatores importantes a serem considerados aqui: o rapaz realmente cometeu o crime? Por que antes de condená-lo nas redes sociais muitas pessoas simplesmente ignoraram essa informação?  Se cometeu, o que o levou a cometê-lo? A família, em uma entrevista, afirmou que ele é dependente químico, tem problemas psicológicos e estava há um mês fugido de casa. Como, então, o que fizeram com ele pode resolver o problema da violência urbana ou da dependência química no país? O que poderia, de fato, resolver? E como?
Em vez de se fazer essas perguntas e buscar uma saída exequível e efetiva para o problema, a maioria das pessoas, do alto do seu pedestal, ocupa-se em exercer um papel que não lhe cabe: julgar e condenar, atacando os efeitos da violência urbana, e não as suas causas. Na primeira metade do século passado, Bertolt Brecht fazia um questionamento que hoje se faz mais atual do que nunca: “Que tempos são estes em que é preciso defender o óbvio?”. E eu completo: que tempos são esses em que as pessoas preferem achismos a argumentos? Tudo o que eu disse aqui deveria ser óbvio, deveria ser senso comum, mas ainda é preciso dizer. E aqueles que o dizem, tentando tecer uma reflexão crítica sobre a situação em que vivemos, são rechaçados, chamados de comunistas, esquerdopatas, ignorantes em lei e política. Que lei? Que política? Se for a lei do mais forte, do mais ricos ou a política suja que vemos no nosso dia a dia, obrigada. Prefiro ficar com a utopia e acreditar que é possível lutar sem se perder.




Muito menos do que eu gostaria (7/6/2017)


Thaís Costa
Junho/2017


Finalizar o meu último texto e me dar conta do avançar das horas me fez perceber algo terrível.. Eu escrevo muito menos do que eu gostaria. Eu leio muito menos do que eu gostaria. Vejo meus amigos, brinco com meus gatos e curto o conforto da minha casa muito menos do que eu gostaria. Viajo, conheço novos lugares e culturas ou simplesmente paro para observar e sentir a natureza muito menos do que eu gostaria. Não tenho namorado ou um grande amor, ainda que não correspondido. Não sou fã de futebol ou adepta a religiões. Trabalho como uma louca. E sinto falta quando não tenho que trabalhar. Como chocolate quase todos os dias, essa pequena loucura me dá algum prazer. E sabe o que é pior disso tudo? É o sentimento de não ter sido. Eu passo tanto tempo sendo, que eu não consigo ser o que eu gostaria de ser. Eu sinto que eu poderia ser tudo o que eu quisesse, se eu tivesse tempo para ser. Eu gostaria de estudar história do Brasil e do mundo, filosofia, história da arte, literatura (por mais que se conheça sempre há mais a se conhecer), música (eu verdadeiramente gostaria de aprender a tocar algum instrumento), gastronomia (eu adoro cozinhar...). Mas, em vez disso, a minha existência está fadada à subsistência. É tarde. Eu devo dormir, amanhã um novo dia começa e é preciso acordar muito cedo para ir trabalhar. Uma vida inteira isenta de grandes paixões, uma vida sem perigos. “A vida apenas, sem mistificação”, como diria Drummond.

terça-feira, 6 de junho de 2017

A fome dos outros (6/6/2017)

Thaís Costa
6/6/2017

Era um dia comum. Terça-feira. Nesse dia, eu só trabalho presencialmente à tarde. Pela manhã, faço coisas de casa, preparo aulas, provas... Acaba sendo um dia mais corrido que outros em que fico o dia inteiro na escola. Tão corrido que acabei indo trabalhar à tarde sem almoçar. E de tanta fome que senti, acabei me esquecendo dela.
Após minha aula, resolvi fazer compras. Precisava de umas roupas de frio para trabalhar. Duas horas depois, quase 18h, finalmente entrei num fast-food japonês. Esfomeada, claro. Uma hora eu tinha que lembrar que estava apenas com o café da manhã. Fiz rapidamente o meu pedido e, sorrindo, brinquei com a atendente: Estou morrendo de fome, não almocei até agora. E ela respondeu: Eu também, mas eu já tirei a minha hora de almoço, não almocei porque não tinha marmita para trazer hoje. Engoli a seco. Meu sorriso, agora amarelo, vagarosamente, se desfez. Não consegui responder nada. Saí do caixa e me dirigi ao lugar bem em frente. Sentei-me e fiquei olhando para aquela mulher. Uma menina, na verdade, não devia ter muito mais que 18 anos.
Enquanto eu aguardava o meu pedido, as histórias dela passaram em minha cabeça. O que teria acontecido? Por que não tinha marmita para trazer? Teria sido a primeira vez? Ela não tinha dinheiro para comprar um salgado? Não poderia comer algo na empresa? Não teria ninguém para ajudá-la? Imaginei aquela moça em casa com pai, mãe, irmãos, um filhinho, talvez, todos sem marmita. Pensei... Pensei... Pensei em comprar algo para ela, mas me lembrei de que já havia tirado a sua hora de almoço. E se ela não gostasse de japonês? Eu poderia comprar um lanche em outro lugar. Mas, então, pensei de novo e cheguei à conclusão de que ela poderia se sentir ofendida se eu oferecesse algo.
Ela me chamou para pegar o meu pedido. Comi maquinalmente, olhando-a de forma fixa. Só conseguia pensar na fome daquela moça. Comi rápido, por vergonha, talvez. Vergonha por ter o que comer, por ter como pagar pela comida, aquela comida sem gosto que me descia forçosamente. Vergonha por pensar tanto sobre a fome dos outros e por não conseguir fazer nada. Saí de lá pensando ainda. E me lembrei das notas de Álvaro de Campos sobre Caeiro em que ele dizia que o Fernando Pessoa era “um novelo embrulhado para o lado de dentro”, alguém que está presente, mas que é como se não estivesse, alguém que “sente as coisas mas não se mexe”.
Identifiquei-me profundamente com Pessoa nesse momento. Ele, porém, teve a genialidade de criar tantas pessoas em uma só pessoa. A mim, restou-me apenas a mediocridade de ser incapaz de fazer algo diante da fome alheia. Eu era uma hipócrita.

Mas no Brasil não há negros? (6/6/2017)


Thaís Costa
6/6/2017

“Mas no Brasil não há negros?”, me perguntou uma amiga tunisiana. Pouco antes, ela me explicava que, para minha surpresa, na Tunísia, um país africano, não havia negros. Na época, eu achava que todo e qualquer país desse continente fosse povoado por negros. Tinha consciência de que havia brancos também. Me lembrava das aulas de história sobre o Apartheid. Mas a inexistência de negros em determinados países me surpreendeu. Não sei se porque eu realmente não soubesse ou porque jamais havia parado para realmente pensar sobre isso. A gente, por mais esclarecido que seja ou tente ser, tende a ver a África não com um continente, mas como um todo, apagando a sua diversidade, a diversidade dos povos que lá habitam e das culturas que lá existem. Então, na minha ignorância, a evidência era que na África havia negros. E ponto.

A pergunta da minha amiga era, portanto, no sentido de dizer: “Ué, mas no Brasil também não há, certo?”. Na época, eu morava em Paris, numa casa de estudantes brasileiros, na Cité Internacionale Universitaire. Toda casa da cité tinha que ter 20% de moradores estrangeiros para promover o intercâmbio cultural. Foi assim que conheci a jovem Marriem. Ela viera da Tunísia para cursar o mestrado; e eu fazia um ano de estágio doutoral na Sorbonne Nouvelle. A pergunta de Marriem foi resultado de sua observação. Puro exame indutivo, podemos dizer. Na Maison du Brésil, onde morávamos, havia cerca de 100 residentes, a maioria doutorandos ou pós-doutorandos. Apenas 20% era estrangeiro. Sobravam 80 brasileiros. Pouquíssimos eram negros. Durante o ano em que lá passei, conheci dois: uma professora de teatro da UFBA e um doutorando de direito da UNB. Marriem, provavelmente, não os conhecera. Havia cinco andares na Maison, muitas vezes nossos círculos de amizade se limitavam aos 20 moradores do andar. E, no nosso andar, de fato, não havia negros. Então ela, provavelmente, concluiu: “se não há negros na Maison du Brésil, é porque não há negros no Brasil”.

A pergunta de Marriem, porém, despertou em mim uma reflexão muito além da mera observação da falha do seu raciocínio. O que significava dizer que, na Maison du Brésil, casa de estudantes brasileiros em Paris, habitada predominantemente por doutorandos e pós-doutorandos, não havia ou havia pouquíssimos brasileiros negros? O que essa pergunta de uma estrangeira dizia sobre o meu país? Um país em que a maioria da população é negra ou mestiça. Lembro que, na época, fiz um comentário no facebook relatando o meu espanto, e alguém reduziu tudo a tal meritocracia: as pessoas que estavam na Maison passaram por um processo seletivo, eram as mais capacitadas, merecedoras, portanto, de ali estarem. Isso nada tem a ver com a cor da pele. Não é mesmo? Respondi a esse comentário – de um brasileiro negro, diga-se – com uma pergunta: “mas, se é uma questão de mérito, por que não há, nesse grupo, negros brasileiros tão merecedores quanto os brancos brasileiros?”. 

Na mesma época, o caso de uma estudante negra e pobre da rede pública de ensino que obteve o primeiro lugar em medicina na USP – Ribeirão Preto, após obter um bônus total de 25% concedido pela USP a candidatos oriundos da rede pública (20%) e a negros, pardos e indígenas (5%), ganhava projeção na mídia brasileira. A jovem, que revelara até então acreditar não ter sido vítima de preconceito, comemorou o seu incrível – e, infelizmente, raro – feito publicando uma foto sua com a frase “a casa-grande surta quando a senzala vira médica” em sua página numa rede social. A foto viralizou. A menina recebeu muitos elogios, mas, também, muitos insultos. E mais uma vez eu pergunto: o que isso nos diz do nosso país? Seria essa menina um exemplo raro de meritocracia entre negros? A estudante relatou que obteve ajuda. Disse que fez curso pré-vestibular gratuito, que amigos da família ajudaram a custear um curso específico de matemática e que outros lhe deram livros. Isto é, a ajudaram naquilo que deveria ser um direito garantido seu. Mas os comentários em sua foto falavam do seu cabelo, da sua cor de pele. Desmereciam a sua conquista por ter sido “beneficiada”. Enfim... a casa-grande surtara. 

Antes de prosseguir, faz-se preciso aqui refletir sobre o que se entende por preconceito. Uma rápida consulta a qualquer dicionário nos levará aos seguintes sentidos: 1. ideia, opinião ou julgamento preconcebido sobre algo ou alguém, sem que haja conhecimento ou reflexão; 2. Atitude genérica de discriminação ou rejeição de pessoas, grupos e ideias com base no sexo, na raça, na nacionalidade, na orientação sexual etc.; 3. Intolerância; 4. Superstição.

Alguns comentários na página da estudante foram, portanto, evidentemente, preconceituosos. Seus algozes não tentaram refutar a sua postagem. Em vez disso, a condenaram por sua raça. E assim a jovem conheceu o preconceito. Mas será que só agora ela o conheceu de fato? Por que ela e a mãe negra, empregada doméstica, moram na periferia? Por que ela estuda em escola pública? Por que ela precisa da ajuda de terceiros para ter acesso à educação de qualidade? Por que ela e outros negros como ela? Por que não é comum ver negro na universidade, quiça na faculdade de medicina? Por que feitos como o dessa jovem, mesmo com a bonificação oferecida pela USP e com o sistema de cotas presente em outras universidades, são raros? Quantos médicos, engenheiros, juízes, almirantes ou generais negros nós conhecemos? E, na televisão, quantos negros temos e quais os papéis destinados a eles? Será a maioria dos negros incompetente, não merecedora de ocupar determinados espaços?

No século XIX, o médico Nina Rodrigues defendia a inferioridade dos negros com base no que chamava de “marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões e seções”. Tal posicionamento foi, inclusive, por muito tempo empregado para justificar a escravidão no país. Se justificamos a ausência de negros em determinados espaços devido à sua falta de mérito, não estaríamos anacronicamente empregando um argumento há muito refutado pela ciência?

Falamos muito no dia 13 de maio de 1888, mas ainda pouco refletimos sobre o que aconteceu do dia 14 em diante. Ideias como a de Nina Rodrigues impuseram a necessidade de branqueamento da sociedade, já que se entendia que a predominância de negros era o empecilho para o desenvolvimento do país. Os ideais liberais, por seu turno, impunham a mão de obra assalariada. Mas, dada a sua suposta inferioridade, não foi a mão de obra dos negros a escolhida. Estes já não nos serviam mais. Vieram os imigrantes europeus. E os negros livres para onde foram? O que sobrou para eles? Que campanhas de inserção do negro na sociedade foram realizadas naquela época e desde então? O processo de marginalização e, portanto, de discriminação do negro no Brasil não é um fato contemporâneo, mas a continuação de um passado de crueldade e negligência. Começou no dia em que o primeiro navio negreiro atracou em nossas praias. Depois, mesmo livres, foram marginalizados. E à margem permanecem dois séculos depois. O funcionamento desse preconceito, dessa discriminação, é muito pior do que aquele cujo sentido encontramos no dicionário. Pior, porque silencioso, não evidente. Pior, porque tem como pressuposto a negação de direitos, a negação do acesso a determinados espaços, negação esta que, historicamente naturalizada, muitas vezes passa despercebida, inclusive para aqueles a quem acesso e direitos são negados.

Em tempos de pandemia, miniconto da solidão ou a luta diária para não surtar (abr/2020)

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